Fanfics da toada Boi Cigano
O boi
preto na mata branca
Por Mateus AntonY
Há muito vivia por ali. Saberia, de cor, mapear as miudezas
daquelas matas. O sol fervente lhe escaldava os miolos, queimando até os
pensamentos. Era impossível matutar sob a acidez e crueza da grande estrela
amarela. Seus cascos gemiam de tanto vagar por aqueles cantos, seus chifres
derretiam. A mata branca era indistinta — parecia que só tinha início. Andasse,
andasse e andasse — nunca se acharia o meio, tampouco fim. O boi preto, valente
até no nome — Sombra Arrinada —, perdia-se pelos labirintos da mata tanto quanto
os de seus pensamentos. Parecia uma sombra sólida e musculosa, dura como
pedra.
Não muito longe de onde o boi dava corda às suas matutações,
descansava um homem. Mas não apenas um homem, um vaqueiro. Com café à mão,
debaixo da sombra de sua casa, esparramado com um compadre sob o aconchego do
oitão, morno e preguiçoso dos dedos à cabeça, cá estava o vaqueiro. Foi então
que, com voz de desafio, seu compadre atiçou-o. E era desafiação arriscada por
mais que demais: embrenhar-se na caatinga para capturar o Sombra — boi cigano
que cabra nenhum nunca teve a feitura de capturar. Mas, seu nome era Goinha, vaqueiro afamado, e
não havia bicho arisco que escapasse do seu laço.
Trajado em seus couros, inspirado em seu sorriso maroto e
gritando junto à terra, disparou em seu cavalo baio mata adentro para capturar
a fera. O boi, por sua vez, não viu de onde Goinha veio. Os cascos do cavalo
trovejaram os chãos e o laço chiou no corte do ar. No segundo seguinte, o boi
preto estava enlaçado, rendido nas funduras da caatinga, rendido pelas mãos do
homem. Mas não apenas um homem, e sim, um vaqueiro. Mais uma vez, Goinha havia
feito o impossível, porque nenhum bicho arisco era páreo para aquele boiadeiro.
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O legado
do velho vaqueiro
POR Mateus Antony
Apertando os olhos em direção ao sol já alto no céu, lambeu
os beiços, umedecendo-os. Decorara aquele caminho desde a infância, repetindo-o
várias vezes durante sua mocidade e idade adulta. Pisara diversas vezes, com os
pés enlameados, no leito rachado e seco do açude a alguns quilômetros dali.
Cavalgou, jovem e cheio das energias, pela mata velha e cansada de tão branca
da caatinga, à procura dos bois embrenhados nas roças fechadas.
O cavalo tropeça numa pedra, acordando-o de seus devaneios.
Alcançando o cantil no interior do gibão, molhou a goela, fazendo chover no
interior do seu corpo, já que não havia presságio nenhum de chuva no céu
preguiçoso do sertão — há muito tempo que a água não fazia carícias naquelas
terras. Guardando o cantil, sentiu o couro do gibão, alisando as lembranças no
tecido cosido e gasto. Ali, sobre o cavalo, sentindo o sol queimar a face e
atentando-se aos sons do sertão, reconhecia-se em casa.
Há alguns anos havia seguido seu filho mais novo, doutor
advogado, à cidade grande, devido o apego de sua mulher ao menino. Agora,
alguns meses após o falecimento dela, em seu regresso ao interior, moraria com
seu filho mais velho. Fazia um tempão danado que não via seus netos. Imaginava
que o mais velho deles estaria à sua idade quando montou num cavalo para
derrubar um boi numa vaquejada para valer pela primeira vez. Sorriu à luz deste
pensamento, imensamente orgulhoso já de antemão.
Sem aviso, invadiram as lembranças de sua distante juventude.
Surpreendido pela inesperada visita dos seus sorrisos moços, rendeu-se à
nostalgia. Era época em que seu amor era único das cachacinhas a pé de tarde,
das vaquejadas e das morenas que se faziam presente às cachacinhas e às
vaquejadas. No suspiro da riqueza de sua mocidade, reconheceu-se feliz, como há
tanto tempo não se sentia. Fora sua esposa a morena a enlaçar seu coração. E,
agora que se fora, este embrenhou-se na caatinga igual boi na madeira,
descarrilhado dentro do mato. Sua mulher fora, por muitas estações, o único
mote de suas toadas, as únicas rimas de seus versos. Dedicara-lhe todas as
toadas que nasceram na boca de seu coração. Com seus trejeitos ligeiros e
sorrisos mansos, conquistou-lhe, jovem e vaqueiro, todo apaixonado, só para si.
Agora, desconhecia poesia em sua cantoria. Perdera-a junto com sua amada.
Filha de fazendeiro, construíram o amor na hora da noite em
que o mundo faz silêncio para dar espaço aos amantes. Às escondidas, ensaiaram
fuga e soltaram seus sonhos como uma criança solta pipa. Os camaradas que à
época apoiaram e ajudaram em sua fuga, agora, haviam morrido. Era ele o único a
carregar nas costas e no couro do gibão — antes dele de seu pai, e antes do seu
pai de seu avô — o legado dos vaqueiros. Foi com a tristeza e solidão deste
pensamento que avistou a cidadezinha esparramada pela paisagem dourada do
sertão, abrindo um sorriso verdadeiro e cheio de esperança e saudade. Desceu de
seu cavalo, amarrando-lhe a um mourão fincado na terra. Andou, em passos rápidos,
até a cidade, reconhecendo sua juventude deitada ali pelos cantos, coberta por
uma finíssima camada de poeira e saudosismo.
Ajeitando o alforje ao lado do corpo com a mão esquerda e
segurando a barra do chapéu com a direita, ele chegou à pracinha. Perdido em
suas matutações e admirâncias, perdeu de vista, por pouco, o garotinho que se
sentava à calçada. Tinha na cabeça um chapéu de aba dobrada — maior do que o
próprio cocuruto —, nas mãos encardidas tinha poeira que se conquista brincando
de ser criança e, nos olhos, trazia aquele brilho do neto que aguarda seu vô da
cidade grande para ir à roça no intento de pôr os arreios e os estribos no
cavalo, ansioso para aprender com o seu velho a arte de ser vaqueiro, de ser
indígena das matas selvagens e brancas do sertão nordestino.
Diploma de vaqueira
Era uma manhã ensolarada quando cheguei ao sertão pernambucano. Havia muito burburinho, as pessoas cochichavam e comentavam sobre um antigo boato, riam e me desafiavam com o olhar.
Enquanto eu matutava sobre o que poderia estar acontecendo, Sr. Rufinol, dono da propriedade, aproximou-se e lançou um grande desafio: pegar um touro que nenhum homem jamais foi capaz, se eu conseguisse me daria um diploma. Sou vaqueira afamada, boto o chicote pra estalar e pegar boi na madeira nunca foi problema para mim, então logo aceitei a proposta de entrar na mata fechada.
Coloquei meus couros, montei em meu cavalo baio e saí a galope em direção à chapada, no caminho fazia versos de improviso buscando inspiração para saber como pegar o boi e mostrar àquela gente o que é ser uma mulher de gado.
Quando encontrei o animal, travamos um longo duelo, por mais de uma vez fui jogada no canto da cerca, mas não me afrouxei, fui para cima do touro enfrentando xique-xique, mandacaru e ponta de pedra e como brasa de angico, eu fiz o touro tremer.
A peleja durou a noite toda, cheguei na fazenda perto do cantar do galo, o povo comemorava mais uma vitória do boi, de tão convencidos não me viram chegar, amarrei o touro no mourão e entrei na venda, pedi que o botassem um copo extra que eu também tinha o que comemorar.
Por Gilmara Freitas, 02 de setembro de 2017.
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Um boi na história
Eu já estava velho e cansado, fazia tempo que não aparecia nenhum tipo metido a herói de perneiras e gibão querendo me dominar. Andar naquelas pastagens e apreciar o horizonte em cima do chapadão era a vida que sempre quis, finalmente havia conseguido.
Vivia de recordações do passado. Na minha mocidade, enquanto era um mamote, tinha fama de valentão, não havia quem me pegasse na carreira, até o vaqueiro mais afamado levou cambão quando veio atrás de mim, já joguei gente do tabuleiro e dei carreira de velho a menino.
Foi num grotilhão por traz da ipueira que senti o ferrão em meu lombo. O vaqueiro me deixou amarrado em um pé de aroeira, enquanto comemorava o diploma que ganhou por tem me aprisionado.
Naquele dia senti o peso da vaidade humana, me sentindo derrotado e entristecido até que ouvi uma voz dizer: levante a cabeça, touro velho, não se deixe abater; você honrou a classe bovina e todo o gado tem orgulho de você. Era um bezerro que me mostrava que, por minha bravura e coragem, eu tinha ficado para a história da bezerrada.
Por Gilmara Freitas, -2 de setembro de 2017.
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